terça-feira, 8 de agosto de 2017

SINHÁ ANINHA - ATO II

SEGUNDO ATO

(Escravos passam pela cena reproduzindo trabalho do dia a dia. Três escravas vão a ponta do palco, reproduzem lavagem de roupa na beira do rio)


CENA I

CLÓVIS: 

- Não achas entranho a falta de entusiasmo da noiva?

ALBERTINA: 

- Timidez! É comum em jovens noivas...




CLÓVIS: 

- Sei não... Algo me diz que alguma coisa está errada nessa história.

ALBERTINA: 

- Meu querido. Aninha é uma moça ajuizada... Ramos é um felizardo em encontra uma moça tão bem afeiçoada.

CLÓVIS: 

- Acho conveniente que Ramos vá vê-la mais vezes.

ALBERTINA: 

- É... Tens razão meu querido. Aninha e Ramos se conhecem tão pouco. Uma aproximação poderá criar um vinculo maior entre os noivos.

ZULÚ: 
- Sinhô...

CLÓVIS: 
- Diga Zulú.

ZULÚ: 
- Capitão do mato qué é falá com sinhô.

CLÓVIS: 
- Peça que entre.

COISA RUIM: 

- Bons dias sinhô Clóvis. Posso ter um particular...
CLÓVIS: - Claro. Albertina, deixe-nos sós.


ALBERTINA: 

- Com licença. (Sai)

CLÓVIS: 

- O que o traz aqui capitão?

COISA RUIM: 

- Gostaria de vim até sua fazenda pra trazer boas novas... Mas num é bem isso que trouxe inté aqui.

CLÓVIS: 

- Do que está falando homem?

COISA RUIM: 

- Acho que preciso de uma cachacinha daquelas, se o senhô coroné me permite.

CLÓVIS: 

(Serve-o) Tome.

COISA RUIM: 

- Diacho! Essa é das boas!

CLÓVIS: 

- Agora diga.

COISA RUIM: 

- Creio que o sinhô num sabe. Mas a casa de coroné Sales tá uma tremenda confusão. E é mode o casamento.



CLÓVIS: 

- O que se sucede?

COISA RUIM: 

- Tudo indica que vosso filho tá sendo enganado por Sinhaninha.

CLÓVIS: 

- Como é que é? Mais que diabo está dizendo homem?

COISA RUIM: 

- Posso? (Serve-se) É que Sinhaninha anda de mancebo com um cabra safado.

CLÓVIS: 

- Não pode ser.

COISA RUIM: 

- E o pió ainda num disse...

CLÓVIS: 

- Ainda tem mais?

COISA RUIM: 

- O cabra safado é um nego... Um preto atrevido lá da fazendo do coroné.

CLÓVIS: 

- Que infâmia! Se essa história se confirmar será um escândalo. E a reputação do meu filho? Ramos, difamado perante toda província. Isso não ficará assim.
COISA RUIM: 

- E que o sinhô vai fazê?

CLÓVIS: 

- Quem viver verá!

COISA RUIM: 

- Só peço que não diga que foi eu que contei.

CLÓVIS: 

- Quanto a isso não se preocupe. (Pega dinheiro) Tome aqui. Por sua lealdade.

COISA RUIM: 

- Obrigado! Com licença. (Sai)

CLÓVIS: 

- Enrabichada!

ALBERTINA: 

- Do que falas?

CLÓVIS: 

- Sinhaninha. Comenta-se em surdina que está enrabichada por um negro escravo de seu pai.

ALBERTINA: 

- Não pode ser! Vai vê que pelo fato de sair na companhia de um negro, por segurança, as pessoas vejam maldades.

CLÓVIS: 

- Não é o que comentam.

ALBERTINA: 

- Que comentam?

CLÓVIS: 

- Que a noiva de nosso filho está se amasiando com um escravo.

ALBERTINA: 

- Vala-me Deus! Mas acho que isso não passe de um grande mal entendido.

CLÓVIS: 

- Onde há fumaça há fogo! Ninguém se atreveria a manchar a honra de uma moça sem nenhum motivo. (Pega o chapéu)

ALBERTINA: 

- E o que vai fazer?

CLÓVIS: 

- Ficar aqui parado é que não vou. Irei passar essa história a limpo.

ALBERTINA: 

- Clovis!

CLÓVIS: 

- Vou até a fazenda do Coronel Sales. É a honra do meu filho que está em jogo. (Sai)
ALBERTINA: 

- Tenha calma Não vá se precipitar!

CENA II

SEVERINA: 

- Anda animada a casa grande...

BINÁ: 

- Por sua felicidade arguma aprontô.

SEVERINA: 

- Eu?

BINÁ: 

- Quem não te conhece que te compre. Vossuncê é a discórdia em pessoa.

SEVERINA: 

- Os outro apronta e eu que sou errada? Agora vá!

BINÁ: 

- Escuta aqui sinhá moleca, se aprontá uma das suas, quebro seus dentes.

SEVERINA: 

- Me sorta! Tá me machucano.

BINÁ: 

- É pra machucá mermo.



SEVERINA: 

- Só quero vê o que o coroné vai achá quando me vê sem os dentes. Ainda mais agora...

BINÁ: 

- Agora o que?

SEVERINA: 

- Que abriu os oios pra pouca vergonha que tá aconteceno aqui mermo debaixo do teto dele. E vossuncê sabe de tudo e nunca disse nada ao coroné. Isso num vai terminá bem. Quando meu sinhô sobé que vossuncê é uma veia acoviteira... Ai vamo vê quem vai perdê os dentes.

BINÁ: 

- Num tô acreditano que vossuncê teve a coragem...

SEVERINA: 

- Coragem? Não... Decência! E o coroné vai sabê me recompensá.

BINÁ: 

- Vossuncê ainda vai pagá muito caro por isso.

SEVERINA: 

- Engana-se! Logo terei em minhas mãos minha carta de alforria.

BINÁ: 

- Sua criola atrevida! (Bofetada)
SEVERINA: 

- Cuidado mãe Biná... Vou transformá sua vida num inferno! Sua velha estúpida. Vou convencê o coroné a te mandá pro tronco que é seu lugá. (Sai)

CLÓVIS: 

- Seu senhor está?

BINÁ: 

- Ta sim sinhô.

CLÓVIS: 

- Vá chamá-lo.

BINÁ: 

- Sim sinhô. Fique a vontade. (Sai)

SALES: 

- Meu caro Clóvis! Que bons ventos os trazem.

CLÓVIS: 

- Não sei se são bons ventos.

SALES: 

- Hora compadre... Aconteceu alguma coisa?

CLÓVIS:

- É o compadre que me dirá.



SALES: 

- Confesso que não estou compreendendo.

CLÓVIS: 

- Com todo respeito coronel Sales... Vou direto ao assunto que trás aqui.

SALES: 

- Fique á vontade. Por favor, sente-se.

CLÓVIS: 

- A honra do meu filho está em jogo.

SALES: 

- A honra do doutor Ramos?

CLÓVIS: 

- Pois é compadre... Corro a miúdos que vossa filha, Sinhaninha, está se envolvendo com um negro, escravo, aqui da fazenda.

SALES: 

- Isso é uma infâmia! Jamais minha filha cometeria tamanho desatino. Mato quem espalha este falso ao testemunho, manchando a honra e a dignidade desta família.

CLÓVIS: 

- Então derramarás muito sangue. Não se fala em outra coisa por toda província.

SALES: 

- Coronel Clovis, não dê ouvido a essa gentinha que não tem o que fazer e fica inventando histórias com o nome alheio. Minha filha é uma moça honesta, pura, digna de total confiança. Ofende-me o senhor levantar tal suspeita, fundamentada em conversas desses desocupados.

CLÓVIS: 

- Não sou eu que estou dizendo e sim o povo. E quanto ao meu filho? Está servindo de chacota nas rodas de conversas.

SALES: 

- O autor de tamanha intriga pagará por todo sofrimento causado a nossas famílias. Posso assegura-lhe que tudo isso não passa de um mal entendido.

CLÓVIS: 

- Assim espero. Aninha com um negro... Seria uma desonra. Um escândalo incalculável!

SALES: 

- Asseguro-lhe que minha filha foi criada com todo rigor. Jamais iria contra os bons costumes.

CLÓVIS: 

- Torço sinceramente que esteja certo.


SALES: 

- Conheço minha filha. E dou-lhe a minha palavra. Isso não passa de um grande mal entendido. Logo será esclarecido.

CLÓVIS: 

- Fico mais tranquilo.

SALES: 

- Verá que tenho razão. O mal de Aninha é andar sempre em companhia de escravos.

CLÓVIS: 

- Pode ser...

SALES: 

- O compadre aceita uma bebida?

CLÓVIS: 

- Não, obrigado. Tenho que ir. A muito que fazer na fazenda.

SALES: 

- Creio que sim.

CLÓVIS: 

- O compadre me dá honra de recepcioná-los em minha casa está noite?

SALES: 

- Será uma imensa satisfação.


CLÓVIS:

- Então até mais vê.

SALES: 

- Até. (Sai)

CLÓVIS:

- Coisa Ruim!

COISA RUIM:

- Sim sinhô!?

CLÓVIS:

- Leve o negro Quilê ao tronco.

COISA RUIM:

- Agora?

CLÓVIS:

- Já. Que está esperando?

COISA RUIM:

- Tô indo sinhô. (Sai)

CLÓVIS:

- Me paga negro! (Sai)

CENA III

BERNADETE: 

- Quilê...


QUILÊ:

- Bernadete?

BERNADETE: 

- Quilê...

QUILÊ:

- Que faz aqui?

BERNADETE: 

- Fuja...

QUILÊ:

- Que maluquice é essa?

BERNADETE: 

- Vá enquanto ainda há tempo.

QUILÊ:

- Num tô entendendo nada.

BERNADETE: 

- O coroné já sabe de tudo.

QUILÊ:

- Mai como?

BERNADETE: 

- A cobra da Severina. Aquela serpente! Descobriu e correu pra contá pro coroné.



QUILÊ:

- E Aninha?

BERNADETE: 

- Pensei que estava aqui.

QUILÊ:

- Vortô pra casa grande.

BERNADETE: 

- Denou-se! Coisa Ruim ta vindo pra cá.

QUILÊ:

- O capitão do mato!

BERNADETE: 

- O coroné ordenou ele a te levá pro tronco. Fuja em quanto há tempo Quilê. Tenho mal pressentimento.

ANINHA:

- Quilê.

QUILÊ:

- Aninha.

BERNADETE: 

- Que faz aqui? Ficou maluca?

ANINHA:

- Não há tempo para explicação. Venha comigo.

BERNADETE: 

- Que isso? Que antecipá  a morte dele?

ANINHA:

- Se não vier comigo... Será um homem morto.

QUILÊ:

- Pra onde?

ANINHA:

- Vou prepara sua fuga pro Quilombo.

BERNADETE: 

- E como Sinhaninha fará isso?

ANINHA:

- Conheço alguns abolicionistas que nos ajudarão.

BERNADETE: 

- E quanto a eu?

ANINHA:

- Você não está em perigo. O alvo é Quilê.

BERNADETE: 

- Então vão...

ANINHA:

- Obrigada minha amiga.

BERNADETE: 

- Você é louca Sinhaninha.

ANINHA:

- Não... Não me perdoarei se algo acontecer a Quilê.

BERNADETE: 

- Boa sorte Quilê.

QUILÊ:

- Inté breve!

BERNADETE: 

- Inté. (Saem)

CENA IV

ALVA: 

- Sales... Aninha, não consigo encontrá-la.

SALES: 

- Quem abriu o quarto?

ALVA: 

- Não sei...

SALES: 

- Irresponsável! Não serve nem pra vigiar a própria filha.

ALVA: 

- Por que me acusas?
SALES: 

- Sempre soube que acabaria mal. (Severina houve a conversa) Nunca que daria certo, pegar a filha de uma negra, com sangre negro, pra criar...

ALVA: 

- Chega! Pare com isso... Alguém pode ouvir.

SALES: 

- Aninha não nega sua raça. Olha o desgosto que nos dá. Sempre teve um pé enfiado na senzala.

ALVA: 

- É minha filha.

SALES: 

- Mas não a respeita como mãe. A vontade que tenho é de ordenar que prenda no troco e a castigue-a como merece.

ALVA: 

- Não serias capaz.

SALES: 

- Não duvide disso! Biná... (Grita)

BINÁ: 

- Nhinhô?!



SALES: 

- Onde está aninha?

BINÁ: 

- Sei não sinhô.

SALES: 

- Não é possível que Aninha tenha saído e ninguém a tenha visto.

ALVA: 

- E Bernadete Bina?

BINÁ: 

- Está na cozinha.

SALES: 

- Vá chamá-la. (Bina sai) Negra velha imprestável!

ALVA: 

- Calma homem.

SALES: 

- Calma!

BERNADETE: 

- Sinhô...

SALES: 

- Onde está Aninha?



BERNADETE: 

- Seio não sinhô.

SALES: 

- Não minta criola.

BERNADETE: 

- Juro que num seio.

SALES: 

- Não sabe?

ALVA: 

- Calma Sales.

BERNADETE: 

- Não. Pensei que estivesse trancafiada em seu quarto.

SALES: 

- Se estiver mentindo...

COISA RUIM: 

- Coroné...

SALES: 

- Que foi?

COISA RUIM: 

- O nego Quilê... Fugiu.




SALES: 

- Que está esperando? Junte alguns homens e vá a seu encalço.

COISA RUIM: 

- Com licença. (Sai)

SALES: 

- Sai... (Grita. Bernadete sai) Que desonra! Só falta Aninha ter fugido com esse negro safado.

ALVA: 

- Aninha não seria capaz.

SALES: 

- Não duvido nada. E agora que direi a família de Ramos?

ALVA: 

- Vamos mandar um mensageiro... Dizer que Aninha está doente...

SALES: 

- Não. Seria óbvio demais. Diremos que você está constipada. (Saem)

CENA V

BERNADETE: 

- Que loucura!

BINÁ: 

- Que essa menina tá fazeno?

BERNADETE: 

- Isso vai acabe mal.

BINÁ: 

- Que tá sabeno menina?

BERNADETE: 

- Num quero nem pensá...

BINÁ: 

- Quilê?

BERNADETE: 

- Mãe Biná, a última vez que viu Aninha, ela tava com Quilê.

BINÁ: 

- Meu Deus! Então a coisa tomou um rumo pió que eu imaginava.

BERNADETE: 

- E vai sobrar para todo mundo. Vamo acabá num tronco.

SEVERINA: - Não quero tá na pele de vossuncês.

BERNADETE: 

- Vai pro inferno sua cobra!

SEVERINA: 

- Inferno? É o que tua vidinha tão insignificante vai se torná.


BERNADETE: 

- Eu vou te mostrá... (Parte para agressão)

BINÁ: 

- Parem já com isso. Num quero confusão na minha cozinha.

BERNADETE: 

- Só num vou infincá minha unha nessa tua cara cínica em respeito a mãe Biná.(Sai)

SEVERINA:

- Tô moreno de medo!

BINÁ: 

- Chega!

SEVERINA: 

- Mãe Biná teve uma fia, num teve?

BINÁ: 

- Num é de tua contá.

SEVERINA: 

- Mode que ficou tão nelvosa?

BINÁ: 

- Sai daqui antes que eu perda a paciência.

SEVERINA: 

- E o que a nega veia vai fazê?
BINÁ: 

- Num me provoque menina!

SEVERINA: 

- Será Sinhaninha tua fia?

BINÁ: 

- Que conversa é essa?

SEVERINA: 

- Ouvi coisas! Aliás, atualmente ouço coisas demais.

BINÁ: 

- Sim tive uma fia. Mas morreu.

SEVERINA:

- Vossuncê mente tão mal. Mãe Biná, já pensou se o sinhô Ramos discobre que sua noivinha tem sangue negro?

BINÁ: 

- Sinhaninha é fia da sinhá Alva.
SEVERINA: - E eu... Sou uma baronesa. (Sai)

BINÁ: - Nega disgraçada!. (Sai)

CENA VI

PADRE SOARES: 

- Já vai... Espere... Só um momento! Senhor! Quem será a esta hora?



ANINHA: 

- Padre...

PADRE SOARES

- Aninha? Que faz aqui a esta hora? Aconteceu alguma coisa com...

ANINHA: 

- Preciso de sua ajuda padre.

PADRE SOARES: 

- Seus pais sabem que estás aqui?

ANINHA: 

- Não.

PADRE SOARES: 

- Senhor! O que estás a me dizer menina?! Isso é lá hora de uma moça andar sozinha por essas bandas?! Não sabes que é perigoso e imprudente?

ANINHA: 

- Que me trás aqui é caso de vida ou morte.

PADRE SOARES: 

- Por Deus! Então diga.

ANINHA: 

- Só o senhor poderá nos ajudar...




PADRE SOARES: 

- Estou confuso. Não estou entendendo mais nada.

ANINHA: 

- Explicarei.

PADRE SOARES: 

- Pela o avançar das horas... Só deve ser mesmo grave.

ANINHA: 

- E, é. De sua ajuda depende a vida de um homem.

PADRE SOARES: 

- Então isto é mais grave que pensei. Conte-me.

ANINHA: 

- Peço-lhe encarecidamente que nos ajude.

PADRE SOARES: 

- Nos ajude?

ANINHA: 

- Quilê? (Entra)

PADRE SOARES: 

- Um escravo.




ANINHA: 

- Um homem que está com a sua vida em risco. Se o capitão do mato põe suas mãos neste homem estará morto.
PADRE SOARES: - Que fez este pobre infeliz?

ANINHA: 

- Está sendo condenado por amar...

PADRE SOARES: 

- Que estás a me dizer menina?

ANINHA: 

- O amor custará a vida desse pobre homem.

PADRE SOARES: 

- E o que deseja de mim?

ANINHA: 

- Que acolha Quilê aqui e o esconda até que eu chegue com a ajuda para tirá-lo da província.

PADRE SOARES: 

- Como vai fazer isso?

ANINHA: 

- Os abolicionistas. Eles me ajudarão a levar Quilê para o quilombo.




PADRE SOARES: 

- Isto é ilegal. Bem sabes disso... Se eu os ajudar, terei o Coronel como inimigo. Estarei cometendo um crime aos olhos da lei.

ANINHA: 

- Preferes a amizade do meu pai a vida deste homem? Não compreendes a gravidade da situação?

PADRE SOARES: 

- Este escravo é propriedade de seu pai...

ANINHA: 

- Propriedade? Então todo aquele sermão onde o senhor declara que todos somos criaturas feitas imagem e semelhança de Deus... E quanto o amor ao próximo? Não diz a bíblia que devemos amar uns aos outros como a si mesmo?

PADRE SOARES: 

- Não confunda as coisas...

ANINHA: 

- E este homem não  é como os outros? Não chora ou sorrir como os outros, não sente dor ou frio como os outros... Não se fere e sangra como os outros... não nasceu, vive, sonha, sofre como os outros? Apesar da diferença da cor da sua pele, é um ser humano, assim como o branco.


PADRE SOARES: 

- Eu quero ajudar... Mas entenda...

ANINHA: 

- Estou desapontada... De que vale a fé sem as obras. O senhor vai mesmo entregar este homem a própria sorte quando na verdade poderia evitar?! Ficarás tranquilo com sua consciência padre? Será que não é hora de cumprir com sua verdadeira missão? É hora desta igreja tirar esta venda dos olhos e enxergar além de seus próprios interesses. Reparar todos estes séculos de injustiças.

PADRE SOARES: 

- Se descobrem que guardo um negro fujão aqui em minha paróquia poderei até ser condenado.

ANINHA: 

- É uma possibilidade. Mas deste julgamento poderá se safar, já do divino não. E no mais padre, Deus está conosco.

PADRE SOARES: 

- Tem razão.

ANINHA: 

- Quer dizer...

PADRE SOARES: 

- Vou ajudá-los.


ANINHA: 

- Ah, padre!

PADRE SOARES: 

- Só que tem apenas uma semana.

ANINHA: 

- Claro! Obrigada padre. Deus o abençoe.

PADRE SOARES: 

- E nos proteja.

ANINHA: 

- Quilê, já sabe... Seja discreto. Ninguém poderá vê-lo, ou tudo estará perdido.

PADRE SOARES: 

- Agora vá filha.

ANINHA: 

- Estás em boas mãos. Sua benção padre. (Sai)

PADRE SOARES:

- Venha Quilê. (Saem)

CENA VI

ZULU: 

- Pai Veio... Sua bença.



PAI VELHO: 

- Que Deus te bençoe fio.

ZULU: 

- Vim trazê umas coisinhas pra vossuncê.

PAI VELHO: 

- Sempre precupado com esse preto veo.

ZULU: 

- Sabe que quero muito bem a vossuncê veio.

PAI VELHO: 

- E num seio? Vossuncê é o único que se alembra desse traste veio.

ZULU: 

- Que traste que nada! Num fale assim, pai veio. Vossuncê é livre.

PAI VELHO: 

- Livre! Pra que? Que adianta essa mardita liberdade?

ZULU: 

- Pai veio foi beneficiado pela lei.

PAI VELHO: 

- Porqueira de lei.



ZULU: 

- Mai graça a essa lei pai veio e outros negros escravos tão livre.

PAI VELHO: 

- Que liberdade é essa meu fio? Essa lei do sexagenário é só ilusão.

ZULU: 

- Por que pai veio diz isso?

PAI VELHO: 

- Ouça aqui fio... Um homi preto, castigado por essa vida de escavidão, veio e doente serve pra que?

ZULU: 

- Ao meno pai veio pode descansá...

PAI VELHO: 

- Descansá... Um nego veio, inválido... Só discansa dispois de morto.

ZULU: 

- Credo! Num diga um disconjuro desse... Pai veio num vai morrer tão cedo. Pai veio há de viver por muito tempo ainda.

PAI VELHO: 

- Morrer pra eu seria a mió coisa que Deus poderia me dá nessa vida. Tudo que eu tinha me foi tirado...

ZULU: 

- Ouvi falá que pai veio era rei na sua terra...

PAI VELHO: 

- Foi trazido pra cá, que nem animá, dentro daquele navio negreiro. Ah, meu fio... Vi muita gente minha morrer a mingua... Quando num era da peste, morria de fome.

ZULU: 

- Mas pai sobreviveu. E tá aqui.

PAI VELHO: 

- Antes tivesse morrido. Aqui fui separado do meu grande amô.

ZULU: 

- Nunca mai soube dela?

PAI VELHO: 

- Tá mai perto que imagina. E minha fia tamém.

ZULU: 

- Deve ser difici, né pai?

PAI VELHO: 

- Minha fia é a criatura mai angelical que existe.

ZULU: 

- É pai. Tem um coração de ouro.

PAI VELHO: 

- A única coisa que me consola. É sabê que minha fia num teve o mermo distino deu e de sua mãe. Num veve escrava.

ZULU: 

- A escravidão tá próximo do fim. Já vi falano muita coisa lá na fazenda. Há um grupo de homis que lutam pela o fim da escravidão e em favô da abolição.

PAI VELHO: 

- Só espero num morrê antes... Sabe Zulu. Quero vê vossuncê livre.

ZULU: 

- Mas enquanto isso preciso vortá pra fazenda antes que dê por minha farta.

PAI VELHO: 

- Vá sim fio. Num quero que tenha probrema mode eu.

ZULU: 

- Sua bença pai.

PAI VELHO: 

- Que Deus o abençoe fio. (Saem)

SEVERINA: 

- Então é isso?! O preto veio tá vivo. Vivinho da silva! Se o nego veio tá vivo, por que é que veia Biná diz que ta morto? He, he, he... Aí tem coisa! Nesse angu tem caroço... E eu vou descobrir! É claro. Sinhaninha é fia desse veio. Agora sim. Tô entendendo tudo. (Sai)

CENA VIII

ALBERTINA: 

- Sinhaninha?

ANINHA: 

- Boas noites!

ALBERTINA: 

- Boas...

CLOVIS: 

- Sinhaninha?! Que faz aqui? Estás sozinha?

ALBERTINA: 

- Vossa mãe sabe que estás aqui?

ANINHA: 

- Falar com Ramos.

CLOVIS: 

- Falar com Ramos?

ANINHA: 

- Sim senhor. Por favor...

CLOVIS: 

- Estás nervosa.
ALBERTINA: 

- Sente-se. Aceita uma água.

ANINHA: 

- Apenas desejo falar com Ramos.

CLOVIS: 

- Albertina faça companhia a senhorita Aninha. Vou chamar Ramos...

ALBERTINA: 

- Claro.

ANINHA: 

- Obrigada.

ALBERTINA: 

- O que há minha filha? Que está acontecendo?

ANINHA: 

- Nada senhora.

ALBERTINA: 

- Como nada! Vosmicê aparece assim, de repente...

ANINHA: 

- Preciso falar com Ramos.

ALBERTINA: 

- Vou mandar avisar a seus pais que estás aqui.
ANINHA: 

- Não. Por favor... Eles não podem saber que estou aqui.

ALBERTINA: 

- Mais por que?

ANINHA:

- A vida de um homem está em jogo.

RAMOS: 

- Aninha?

ALBERTINA: 

- Vou deixá-los a sós. (Sai)

ANINHA: 

- Ramos... Preciso de sua ajuda.

RAMOS: 

- E em que posso ajudá-la.

ANINHA: 

- Sei que és abolicionista.

RAMOS: 

- Quem lhe disse isso?

ANINHA: 

- Também sou simpatizante do movimento.



RAMOS: 

- Como posso ajudá-la?

ANINHA: 

- Tenho um amigo, um escravo. Precisa de fuga.

RAMOS: 

- O que lhe faz pensar que posso ajudá-lo?

ANINHA: 

- Sei que tens um bom coração. Quilê corre risco de morte.

RAMOS: 

- Quilê. (Breve silêncio) Acha mesmo que ajudaria a um homem que tem sido o motivo da minha desonra?

ANINHA: 

- Nunca fiz nenhum acordo com o senhor. Por tanto nunca o desonrei.

RAMOS: 

- Seria capaz de qual quer coisa para salvar a vida desse desgraçado?

ANINHA: 

- Qual quer coisa!

RAMOS: 

- Qual quer coisa?


ANINHA: 

- Sim.

RAMOS: 

- Até se casar comigo para salvar a vida dele?

ANINHA: 

- Sim.

RAMOS: 

- Se sacrificaria a tanto?

ANINHA: 

- Não seria nenhum sacrifício. Quem ama é capaz de libertar. Agora caí em sã consciência. Nossa sociedade jamais aceitará que uma moça branca se case com um homem negro, escravo.

RAMOS: 

- Admiro sua coragem. Sua sinceridade me comove.

ANINHA: 

- Sei que és um bom homem. E que assim como eu, não se sente confortável ao vê o sofrimento destes pobres infelizes.

RAMOS: 

- Eu o ajudarei.




ANINHA: 

- Meu Deus! Nem sei como agradecê-lo.

RAMOS: 

- Se um dia poder me amar com tanta lealdade...

ANINHA: 

- Temos que ir. Não temos muito tempo.

RAMOS: 

- Vamos...

CLÓVIS: 

- Onde vão?

ALBERTINA: 

- Não podem sair assim...

RAMOS: 

- Não há com que se preocupar. Logo estaremos de volta. (Saem)

CLÓVIS: 

- Que loucura é essa?

ALBERTINA: 

- Não faço ideia. Mas boa coisa não é.

CLÓVIS: 

- Meu chapéu?
ALBERTINA: 

- Onde vais?

CLÓVIS: 

- Saber o que está acontecendo. (Sai)

CENA IX

SALES: 

- Coisa Ruim...

ALVA: 

- Que queres com o capitão do mato?

SALES: 

- Não te metas...

COISA RUIM: 

- Sim senhô?

SALES: 

- Aninha?

COISA RUIM: 

- Nem siná da moça.

SALES: 

- Vamos vê se não aparece...

ALVA: 

- Que vais fazer?


SALES: 

- Coisa Ruim... Pegue Bernadete e a velha Biná...

ALVA: 

- Não Sales...

SALES: 

- Leve-as para o tronco.

COISA RUIM: 

- Sim sinhô. (Sai)

SALES: 

- Cansei de ser benevolente. Vamos vê se agora não falam o que sabem.

ALVA: 

- Isso é loucura homem.

SALES: 

- Loucura é ter deixado sua filha chegar ao ponto no qual chegou.

ALVA: 

- Preferia morrer ao presenciar tudo isso.

SALES: 

- Nunca devíamos ter pego aquela menina pra criar. Corre em suas veias sangue ruim, sangue de negro.



ALVA: 

- Não castigue a negra Biná... Tem piedade Sales... Já tem idade avançada. Não irá suportar o castigo.

SALES: 

- Se isso for verdade... Então dirá logo onde está Aninha.

COISA RUIM: 

- Sinhô... Já estão no tronco.
SALES: - Vamos ver se não falam. (Sai)

CENA X

SOARES: 

- Já vai... Jesus, Maria, José... Não precisa derrubar a porta!

SEVERINA: 

- Padre.

SOARES: 

- Você...

SEVERINA: 

- É. Sou uma escrava da fazenda do Coroné Sales.

SOARES: 

- Que faz aqui?



SEVERINA: 

- Como o vossuncê num soubesse.

SOARES: 

- Que estás dizendo sua negrinha atrevida?

SEVERINA: 

- Sei que Sinhaninha tá aqui.

SOARES: 

- Tá variando?

SEVERINA: 

- Tem um recado importante pra ela.

SOARES: 

- Perdeu a viagem.

SEVERINA: 

- É uma pena. (Fala alto) Poi ela gostaria de sabê que a velha Biná tá no tronco junco com a sonsa da Bernadete. E num vai aguentá muito tempo.

ANINHA: 

- Que estás dizendo?

SEVERINA: 

- Isso mermo que vossuncê ouviu. Se a veia Biná e a outra acovetera tua num dissé onde vossuncê tá, vão apanhá inté morrê. E sabe que eu to inté com peninha delas.
ANINHA: 

- Nega atrevida! (Bofetada)

SEVERINA: 

- Essa é a última vez que vossuncê me toca. Mode que vossuncê num é mio que eu.

SOARES: 

- Veja com fala com sua senhora.

SEVERINA: 

- Fala sério! Ela é tão escrava quanto eu.

ANINHA: 

- Que loucura é essa?

SOARES: 

- Cala-te!

ANINHA: 

- Padre? O senhor... Sabe de alguma coisa?

SOARES: 

- Não dê ouvido a essa negra atrevida!

SEVERINA: 

- Vossuncê num é fia do coroné com Sinhá Alva. Sua mãe é a nega Biná.



ANINHA: 

- Não pode ser...

SOARES: 

- Saia daqui sua nega.

SEVERINA: 

- E teu pai tá vivo. É um veio nego alforriado.

ANINHA: 

- Padre... Isso é verdade?

SOARES: 

- Não dê ouvidos a está negra...

SEVERINA: 

- Vai deixá tua mãe morrer no tronco?

ANINHA: 

- Biná! Minha mãe.

SEVERINA: 

- Se demorá muito... Sei não. A veia num vai aguentar.

ANINHA: 

- Padre... Tenho sangre negro?

SOARES: 

- Filha...



ANINHA: 

- Não minta pra mim!

SOARES: 

- Vá salvar tua mãe. (Aninha sai correndo)

SEVERINA: 

- Pela primeira vez padre, o senhor fez algo de bom. Que adianta essa batina, essa cruz pendurada no seu pescoço, se a vida inteira o sinhô e sua igreja sempre virou as costas para os negros. E ainda tem a coragem de dizê que diante dos oios de Deus todo mundo é iguá. E o nego, num é gente? É mermo uma coisa? Num tem sangue, num é feito de carne e osso assim como o branco? Deus...? Que Deus é esse que o sinhô acredita? (Sai)

CENA X

SALES: 

- Prepare o chicote...

COISA RUIM: 

- Tá pronto!

SALES: 

- Pode deixar. Eu quero ter o prazer de tirar a verdade dessas negras. Você vai atrás daquele negro safado e só retorne a esta fazenda trazendo-o, vivo ou morto.


COISA RUIM: 

- Sim sinhô.

SALES: 

- Agora somos nós...

ALVA: 

- Não Sales. Piedade!

SALES: 

- É melhor entrar.

ALVA: 

- Não faz isso. Pelo amor de Deus!

SALES: 

- Cala-te. (Pega Bernadete pelos cabelos) Por que começo?

BERNADETE: 

- Juro que num seio de nada não...

SALES: 

- Mas nem ainda perguntei. Já sentiu o corte e a dor causada por este chicote? Só que estou em dúvida... Se começo por ti ou pela velha escrava Biná. Que acha Bernadete? Será que a velha negra vai suportar muito tempo? Pois vou chicoteá-la até que você me diga onde está Aninha.




BERNADETE: 

- Num seio sinhô. Juro que num seio. (Chicoteia Biná)

SALES: 

- Não? Onde está? (Chicoteia Biná)

BERNADETE: - Pare com isso... Juro que não seio.

SALES: 

- Vais lembrar antes que ela morra de tanto apanhar.

ALVA: 

- Chega! (Entra na frente)

SALES: 

- Saia! (A empurra. Ela cai) Não se atreva.

ALVA: 

- Estás louco. (Ele a esbofeteia)

SALES: 

- Só saio daqui quando me disser onde se encontra Aninha.

BERNADETE: 

- Já disse que não seio. Eu juro sinhô. Deixe ela. Bata neu.





ANINHA: 

- Solte-a. Es-me aqui. Sou eu que mereço está aí. Fui eu que causei toda essa confusão.

ALVA: 

- Filha...


ANINHA:

- Por que esconderam de mim? Por que nunca me disseram que não sou vossa filha?

ALVA: 

- Que dizes filha?

ANINHA: 

- Chega de tantas mentiras. Já sei de toda verdade. Tenho sangue negro. Mãe Biná é minha verdadeira mãe. Por que nunca me disse?

BINÁ: 

- Fiá... Num sô tua mãe. Sinhá Alva é tua mãe.

ANINHA: 

- Sei que queres me proteger. Mais não precisa mais. Já conheço a verdade.

ALVA: 

- Eu e Biná parimos no mesmo dia. Só que minha filha nasceu morta. E como você era clarinha pedi a Biná para criar você no lugar da minha filha.

ANINHA: 

- E meu pai?

ALVA:

- Teu pai foi um capitão que trabalhava aqui na fazenda. Quando Sales soube do que aconteceu, mandou matar...

ANINHA: 

- Assassino!... Solte-a. Me coloque no lugar dela.

ALVA: 

- Não.

ANINHA: 

- Seja digno.

SALES: 

- Terás o que merece. (Ele solta Biná e amarra Aninha. Chicoteia).

RAMOS: 

- Solte-a.

SALES: 

- É minha propriedade, assim como qual quer escravo desta fazenda.

RAMOS: 

- Não mais. A princesa Isabel acaba de assinar a Lai Áurea. Agora definitivamente a partir de hoje dia 13 de maio de 1888, todos os escravos sem exceção estão livres.

SALES: 

- Não pode ser...

RAMOS: 

- Acabou. (Grita) Todos os escravos estão livres. Livres! (Sales pega uma arma e sai)

ALVA:

- Oh, meu Deus! Sales... (Sai)

RAMOS: 

- Aninha...

BINÁ: 

- Fiá.

ANINHA: 

- Tudo vai ficar bem. (Abraça Bernadete) Obrigado minha amiga.
BERNADETE: - Tive tanto medo.

ANINHA: 

- Sei que sim. Leve mãe Biná... Cuide dessa ferida. (Sai Bernadete abraçada com Biná) Obrigada.

RAMOS: 

- Fico feliz em ajudá-la.

ANINHA: 

- Honrarei minha palavra.

RAMOS: 

- Palavras são menos valiosas que o desejo do coração. A liberto da promessa!

ANINHA: 

- És muito generoso.

RAMOS: 

- Busco ser justo. (Ouvem um tiro. Choro de Alva)

ALVA: 

- Está morto! Sales... Se matou.

ANINHA: 

- Mãe...

ALVA: 

- Fique longe de mim... fique longe de mim! (Estérica. Sai)

QUILÊ: 

- Aninha...

ANINHA:

- Quilê? Que faz aqui?

QUILÊ:

- Sou livre! Livre.

ANINHA:

- Pensei que estivesse no quilombal...

QUILÊ:

- Não suportaria ficar longe de você.

ANINHA: 

- E o capitão do mato?

QUILÊ: 

- Não precisamos mais se precupá com ele. O Coisa Ruim tá onde merece. Do lado do outro coisa ruim.

ANINHA: 

- Nem acredito!

QUILÊ: 

- Vida nova Aninha...

ANINHA: 

- É, vida nova! (Saem)


F I M

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