SEGUNDO ATO
(Escravos
passam pela cena reproduzindo trabalho do dia a dia. Três escravas vão a ponta
do palco, reproduzem lavagem de roupa na beira do rio)
CENA I
CLÓVIS:
- Não achas entranho a falta de entusiasmo da
noiva?
ALBERTINA:
- Timidez! É comum em jovens noivas...
CLÓVIS:
- Sei não... Algo me diz que alguma coisa está
errada nessa história.
ALBERTINA:
- Meu querido. Aninha é uma moça ajuizada...
Ramos é um felizardo em encontra uma moça tão bem afeiçoada.
CLÓVIS:
- Acho conveniente que Ramos vá vê-la mais
vezes.
ALBERTINA:
- É... Tens razão meu querido. Aninha e Ramos
se conhecem tão pouco. Uma aproximação poderá criar um vinculo maior entre os
noivos.
ZULÚ:
- Sinhô...
CLÓVIS:
- Diga Zulú.
ZULÚ:
- Capitão do mato qué é falá com sinhô.
CLÓVIS:
- Peça que entre.
COISA RUIM:
- Bons dias sinhô Clóvis. Posso ter um
particular...
CLÓVIS: - Claro. Albertina, deixe-nos sós.
ALBERTINA:
- Com licença. (Sai)
CLÓVIS:
- O que o traz aqui capitão?
COISA RUIM:
- Gostaria de vim até sua fazenda pra trazer
boas novas... Mas num é bem isso que trouxe inté aqui.
CLÓVIS:
- Do que está falando homem?
COISA RUIM:
- Acho que preciso de uma cachacinha daquelas,
se o senhô coroné me permite.
CLÓVIS:
- (Serve-o) Tome.
COISA RUIM:
- Diacho! Essa é das boas!
CLÓVIS:
- Agora diga.
COISA RUIM:
- Creio que o sinhô num sabe. Mas a casa de
coroné Sales tá uma tremenda confusão. E é mode o casamento.
CLÓVIS:
- O que se sucede?
COISA RUIM:
- Tudo indica que vosso filho tá sendo
enganado por Sinhaninha.
CLÓVIS:
- Como é que é? Mais que diabo está dizendo
homem?
COISA RUIM:
- Posso? (Serve-se) É que
Sinhaninha anda de mancebo com um cabra safado.
CLÓVIS:
- Não pode ser.
COISA RUIM:
- E o pió ainda num disse...
CLÓVIS:
- Ainda tem mais?
COISA RUIM:
- O cabra safado é um nego... Um preto
atrevido lá da fazendo do coroné.
CLÓVIS:
- Que infâmia! Se essa história se confirmar
será um escândalo. E a reputação do meu filho? Ramos, difamado perante toda
província. Isso não ficará assim.
COISA RUIM:
- E que o sinhô vai fazê?
CLÓVIS:
- Quem viver verá!
COISA RUIM:
- Só peço que não diga que foi eu que contei.
CLÓVIS:
- Quanto a isso não se preocupe. (Pega
dinheiro) Tome aqui. Por sua lealdade.
COISA RUIM:
- Obrigado! Com licença. (Sai)
CLÓVIS:
- Enrabichada!
ALBERTINA:
- Do que falas?
CLÓVIS:
- Sinhaninha. Comenta-se em surdina que está
enrabichada por um negro escravo de seu pai.
ALBERTINA:
- Não pode ser! Vai vê que pelo fato de sair
na companhia de um negro, por segurança, as pessoas vejam maldades.
CLÓVIS:
- Não é o que comentam.
ALBERTINA:
- Que comentam?
CLÓVIS:
- Que a noiva de nosso filho está se amasiando
com um escravo.
ALBERTINA:
- Vala-me Deus! Mas acho que isso não passe de
um grande mal entendido.
CLÓVIS:
- Onde há fumaça há fogo! Ninguém se atreveria
a manchar a honra de uma moça sem nenhum motivo. (Pega o chapéu)
ALBERTINA:
- E o que vai fazer?
CLÓVIS:
- Ficar aqui parado é que não vou. Irei passar
essa história a limpo.
ALBERTINA:
- Clovis!
CLÓVIS:
- Vou até a fazenda do Coronel Sales. É a
honra do meu filho que está em jogo. (Sai)
ALBERTINA:
- Tenha calma Não vá se precipitar!
CENA II
SEVERINA:
- Anda animada a casa grande...
BINÁ:
- Por sua felicidade arguma aprontô.
SEVERINA:
- Eu?
BINÁ:
- Quem não te conhece que te compre. Vossuncê
é a discórdia em pessoa.
SEVERINA:
- Os outro apronta e eu que sou errada? Agora
vá!
BINÁ:
- Escuta aqui sinhá moleca, se aprontá uma das
suas, quebro seus dentes.
SEVERINA:
- Me sorta! Tá me machucano.
BINÁ:
- É pra machucá mermo.
SEVERINA:
- Só quero vê o que o coroné vai achá quando
me vê sem os dentes. Ainda mais agora...
BINÁ:
- Agora o que?
SEVERINA:
- Que abriu os oios pra pouca vergonha que tá
aconteceno aqui mermo debaixo do teto dele. E vossuncê sabe de tudo e nunca
disse nada ao coroné. Isso num vai terminá bem. Quando meu sinhô sobé que
vossuncê é uma veia acoviteira... Ai vamo vê quem vai perdê os dentes.
BINÁ:
- Num tô acreditano que vossuncê teve a
coragem...
SEVERINA:
- Coragem? Não... Decência! E o coroné vai
sabê me recompensá.
BINÁ:
- Vossuncê ainda vai pagá muito caro por isso.
SEVERINA:
- Engana-se! Logo terei em minhas mãos minha
carta de alforria.
BINÁ:
- Sua criola atrevida! (Bofetada)
SEVERINA:
- Cuidado mãe Biná... Vou transformá sua vida
num inferno! Sua velha estúpida. Vou convencê o coroné a te mandá pro tronco
que é seu lugá. (Sai)
CLÓVIS:
- Seu senhor está?
BINÁ:
- Ta sim sinhô.
CLÓVIS:
- Vá chamá-lo.
BINÁ:
- Sim sinhô. Fique a vontade. (Sai)
SALES:
- Meu caro Clóvis! Que bons ventos os trazem.
CLÓVIS:
- Não sei se são bons ventos.
SALES:
- Hora compadre... Aconteceu alguma coisa?
CLÓVIS:
- É o compadre que me dirá.
SALES:
- Confesso que não estou compreendendo.
CLÓVIS:
- Com todo respeito coronel Sales... Vou
direto ao assunto que trás aqui.
SALES:
- Fique á vontade. Por favor, sente-se.
CLÓVIS:
- A honra do meu filho está em jogo.
SALES:
- A honra do doutor Ramos?
CLÓVIS:
- Pois é compadre... Corro a miúdos que vossa
filha, Sinhaninha, está se envolvendo com um negro, escravo, aqui da fazenda.
SALES:
- Isso é uma infâmia! Jamais minha filha
cometeria tamanho desatino. Mato quem espalha este falso ao testemunho,
manchando a honra e a dignidade desta família.
CLÓVIS:
- Então derramarás muito sangue. Não se fala
em outra coisa por toda província.
SALES:
- Coronel Clovis, não dê ouvido a essa
gentinha que não tem o que fazer e fica inventando histórias com o nome alheio.
Minha filha é uma moça honesta, pura, digna de total confiança. Ofende-me o
senhor levantar tal suspeita, fundamentada em conversas desses desocupados.
CLÓVIS:
- Não sou eu que estou dizendo e sim o povo. E
quanto ao meu filho? Está servindo de chacota nas rodas de conversas.
SALES:
- O autor de tamanha intriga pagará por todo
sofrimento causado a nossas famílias. Posso assegura-lhe que tudo isso não
passa de um mal entendido.
CLÓVIS:
- Assim espero. Aninha com um negro... Seria
uma desonra. Um escândalo incalculável!
SALES:
- Asseguro-lhe que minha filha foi criada com
todo rigor. Jamais iria contra os bons costumes.
CLÓVIS:
- Torço sinceramente que esteja certo.
SALES:
- Conheço minha filha. E dou-lhe a minha
palavra. Isso não passa de um grande mal entendido. Logo será esclarecido.
CLÓVIS:
- Fico mais tranquilo.
SALES:
- Verá que tenho razão. O mal de Aninha é
andar sempre em companhia de escravos.
CLÓVIS:
- Pode ser...
SALES:
- O compadre aceita uma bebida?
CLÓVIS:
- Não, obrigado. Tenho que ir. A muito que
fazer na fazenda.
SALES:
- Creio que sim.
CLÓVIS:
- O compadre me dá honra de recepcioná-los em
minha casa está noite?
SALES:
- Será uma imensa satisfação.
CLÓVIS:
- Então até mais vê.
SALES:
- Até. (Sai)
CLÓVIS:
- Coisa Ruim!
COISA RUIM:
- Sim sinhô!?
CLÓVIS:
- Leve o negro Quilê ao tronco.
COISA RUIM:
- Agora?
CLÓVIS:
- Já. Que está esperando?
COISA RUIM:
- Tô indo sinhô. (Sai)
CLÓVIS:
- Me paga negro! (Sai)
CENA III
BERNADETE:
- Quilê...
QUILÊ:
- Bernadete?
BERNADETE:
- Quilê...
QUILÊ:
- Que faz aqui?
BERNADETE:
- Fuja...
QUILÊ:
- Que maluquice é essa?
BERNADETE:
- Vá enquanto ainda há tempo.
QUILÊ:
- Num tô entendendo nada.
BERNADETE:
- O coroné já sabe de tudo.
QUILÊ:
- Mai como?
BERNADETE:
- A cobra da Severina. Aquela serpente!
Descobriu e correu pra contá pro coroné.
QUILÊ:
- E Aninha?
BERNADETE:
- Pensei que estava aqui.
QUILÊ:
- Vortô pra casa grande.
BERNADETE:
- Denou-se! Coisa Ruim ta vindo pra cá.
QUILÊ:
- O capitão do mato!
BERNADETE:
- O coroné ordenou ele a te levá pro tronco.
Fuja em quanto há tempo Quilê. Tenho mal pressentimento.
ANINHA:
- Quilê.
QUILÊ:
- Aninha.
BERNADETE:
- Que faz aqui? Ficou maluca?
ANINHA:
- Não há tempo para explicação. Venha comigo.
BERNADETE:
- Que isso? Que antecipá a morte
dele?
ANINHA:
- Se não vier comigo... Será um homem morto.
QUILÊ:
- Pra onde?
ANINHA:
- Vou prepara sua fuga pro Quilombo.
BERNADETE:
- E como Sinhaninha fará isso?
ANINHA:
- Conheço alguns abolicionistas que nos
ajudarão.
BERNADETE:
- E quanto a eu?
ANINHA:
- Você não está em perigo. O alvo é Quilê.
BERNADETE:
- Então vão...
ANINHA:
- Obrigada minha amiga.
BERNADETE:
- Você é louca Sinhaninha.
ANINHA:
- Não... Não me perdoarei se algo acontecer a
Quilê.
BERNADETE:
- Boa sorte Quilê.
QUILÊ:
- Inté breve!
BERNADETE:
- Inté. (Saem)
CENA IV
ALVA:
- Sales... Aninha, não consigo encontrá-la.
SALES:
- Quem abriu o quarto?
ALVA:
- Não sei...
SALES:
- Irresponsável! Não serve nem pra vigiar a
própria filha.
ALVA:
- Por que me acusas?
SALES:
- Sempre soube que acabaria mal. (Severina
houve a conversa) Nunca que daria certo, pegar a filha de uma negra,
com sangre negro, pra criar...
ALVA:
- Chega! Pare com isso... Alguém pode ouvir.
SALES:
- Aninha não nega sua raça. Olha o desgosto
que nos dá. Sempre teve um pé enfiado na senzala.
ALVA:
- É minha filha.
SALES:
- Mas não a respeita como mãe. A vontade que
tenho é de ordenar que prenda no troco e a castigue-a como merece.
ALVA:
- Não serias capaz.
SALES:
- Não duvide disso! Biná... (Grita)
BINÁ:
- Nhinhô?!
SALES:
- Onde está aninha?
BINÁ:
- Sei não sinhô.
SALES:
- Não é possível que Aninha tenha saído e
ninguém a tenha visto.
ALVA:
- E Bernadete Bina?
BINÁ:
- Está na cozinha.
SALES:
- Vá chamá-la. (Bina sai) Negra
velha imprestável!
ALVA:
- Calma homem.
SALES:
- Calma!
BERNADETE:
- Sinhô...
SALES:
- Onde está Aninha?
BERNADETE:
- Seio não sinhô.
SALES:
- Não minta criola.
BERNADETE:
- Juro que num seio.
SALES:
- Não sabe?
ALVA:
- Calma Sales.
BERNADETE:
- Não. Pensei que estivesse trancafiada em seu
quarto.
SALES:
- Se estiver mentindo...
COISA RUIM:
- Coroné...
SALES:
- Que foi?
COISA RUIM:
- O nego Quilê... Fugiu.
SALES:
- Que está esperando? Junte alguns homens e vá
a seu encalço.
COISA RUIM:
- Com licença. (Sai)
SALES:
- Sai... (Grita. Bernadete sai) Que
desonra! Só falta Aninha ter fugido com esse negro safado.
ALVA:
- Aninha não seria capaz.
SALES:
- Não duvido nada. E agora que direi a família
de Ramos?
ALVA:
- Vamos mandar um mensageiro... Dizer que
Aninha está doente...
SALES:
- Não. Seria óbvio demais. Diremos que você
está constipada. (Saem)
CENA V
BERNADETE:
- Que loucura!
BINÁ:
- Que essa menina tá fazeno?
BERNADETE:
- Isso vai acabe mal.
BINÁ:
- Que tá sabeno menina?
BERNADETE:
- Num quero nem pensá...
BINÁ:
- Quilê?
BERNADETE:
- Mãe Biná, a última vez que viu Aninha, ela
tava com Quilê.
BINÁ:
- Meu Deus! Então a coisa tomou um rumo pió
que eu imaginava.
BERNADETE:
- E vai sobrar para todo mundo. Vamo acabá num
tronco.
SEVERINA: - Não quero tá na pele de vossuncês.
BERNADETE:
- Vai pro inferno sua cobra!
SEVERINA:
- Inferno? É o que tua vidinha tão
insignificante vai se torná.
BERNADETE:
- Eu vou te mostrá... (Parte para
agressão)
BINÁ:
- Parem já com isso. Num quero confusão na
minha cozinha.
BERNADETE:
- Só num vou infincá minha unha nessa tua cara
cínica em respeito a mãe Biná.(Sai)
SEVERINA:
- Tô moreno de medo!
BINÁ:
- Chega!
SEVERINA:
- Mãe Biná teve uma fia, num teve?
BINÁ:
- Num é de tua contá.
SEVERINA:
- Mode que ficou tão nelvosa?
BINÁ:
- Sai daqui antes que eu perda a paciência.
SEVERINA:
- E o que a nega veia vai fazê?
BINÁ:
- Num me provoque menina!
SEVERINA:
- Será Sinhaninha tua fia?
BINÁ:
- Que conversa é essa?
SEVERINA:
- Ouvi coisas! Aliás, atualmente ouço coisas
demais.
BINÁ:
- Sim tive uma fia. Mas morreu.
SEVERINA:
- Vossuncê mente tão mal. Mãe Biná, já pensou
se o sinhô Ramos discobre que sua noivinha tem sangue negro?
BINÁ:
- Sinhaninha é fia da sinhá Alva.
SEVERINA: - E eu... Sou uma
baronesa. (Sai)
BINÁ: - Nega disgraçada!. (Sai)
CENA VI
PADRE SOARES:
- Já vai... Espere... Só um momento! Senhor!
Quem será a esta hora?
ANINHA:
- Padre...
PADRE SOARES:
- Aninha? Que faz aqui a esta hora? Aconteceu
alguma coisa com...
ANINHA:
- Preciso de sua ajuda padre.
PADRE SOARES:
- Seus pais sabem que estás aqui?
ANINHA:
- Não.
PADRE SOARES:
- Senhor! O que estás a me dizer menina?! Isso
é lá hora de uma moça andar sozinha por essas bandas?! Não sabes que é perigoso
e imprudente?
ANINHA:
- Que me trás aqui é caso de vida ou morte.
PADRE SOARES:
- Por Deus! Então diga.
ANINHA:
- Só o senhor poderá nos ajudar...
PADRE SOARES:
- Estou confuso. Não estou entendendo mais
nada.
ANINHA:
- Explicarei.
PADRE SOARES:
- Pela o avançar das horas... Só deve ser
mesmo grave.
ANINHA:
- E, é. De sua ajuda depende a vida de um
homem.
PADRE SOARES:
- Então isto é mais grave que pensei.
Conte-me.
ANINHA:
- Peço-lhe encarecidamente que nos ajude.
PADRE SOARES:
- Nos ajude?
ANINHA:
- Quilê? (Entra)
PADRE SOARES:
- Um escravo.
ANINHA:
- Um homem que está com a sua vida em risco.
Se o capitão do mato põe suas mãos neste homem estará morto.
PADRE SOARES: - Que fez este pobre
infeliz?
ANINHA:
- Está sendo condenado por amar...
PADRE SOARES:
- Que estás a me dizer menina?
ANINHA:
- O amor custará a vida desse pobre homem.
PADRE SOARES:
- E o que deseja de mim?
ANINHA:
- Que acolha Quilê aqui e o esconda até que eu
chegue com a ajuda para tirá-lo da província.
PADRE SOARES:
- Como vai fazer isso?
ANINHA:
- Os abolicionistas. Eles me ajudarão a levar
Quilê para o quilombo.
PADRE SOARES:
- Isto é ilegal. Bem sabes disso... Se eu os
ajudar, terei o Coronel como inimigo. Estarei cometendo um crime aos olhos da
lei.
ANINHA:
- Preferes a amizade do meu pai a vida deste
homem? Não compreendes a gravidade da situação?
PADRE SOARES:
- Este escravo é propriedade de seu pai...
ANINHA:
- Propriedade? Então todo aquele sermão onde o
senhor declara que todos somos criaturas feitas imagem e semelhança de Deus...
E quanto o amor ao próximo? Não diz a bíblia que devemos amar uns aos outros
como a si mesmo?
PADRE SOARES:
- Não confunda as coisas...
ANINHA:
- E este homem não é como os
outros? Não chora ou sorrir como os outros, não sente dor ou frio como os
outros... Não se fere e sangra como os outros... não nasceu, vive, sonha, sofre
como os outros? Apesar da diferença da cor da sua pele, é um ser humano, assim
como o branco.
PADRE SOARES:
- Eu quero ajudar... Mas entenda...
ANINHA:
- Estou desapontada... De que vale a fé sem as
obras. O senhor vai mesmo entregar este homem a própria sorte quando na verdade
poderia evitar?! Ficarás tranquilo com sua consciência padre? Será que não é
hora de cumprir com sua verdadeira missão? É hora desta igreja tirar esta venda
dos olhos e enxergar além de seus próprios interesses. Reparar todos estes
séculos de injustiças.
PADRE SOARES:
- Se descobrem que guardo um negro fujão aqui
em minha paróquia poderei até ser condenado.
ANINHA:
- É uma possibilidade. Mas deste julgamento
poderá se safar, já do divino não. E no mais padre, Deus está conosco.
PADRE SOARES:
- Tem razão.
ANINHA:
- Quer dizer...
PADRE SOARES:
- Vou ajudá-los.
ANINHA:
- Ah, padre!
PADRE SOARES:
- Só que tem apenas uma semana.
ANINHA:
- Claro! Obrigada padre. Deus o abençoe.
PADRE SOARES:
- E nos proteja.
ANINHA:
- Quilê, já sabe... Seja discreto. Ninguém
poderá vê-lo, ou tudo estará perdido.
PADRE SOARES:
- Agora vá filha.
ANINHA:
- Estás em boas mãos. Sua benção padre. (Sai)
PADRE SOARES:
- Venha Quilê. (Saem)
CENA VI
ZULU:
- Pai Veio... Sua bença.
PAI VELHO:
- Que Deus te bençoe fio.
ZULU:
- Vim trazê umas coisinhas pra vossuncê.
PAI VELHO:
- Sempre precupado com esse preto veo.
ZULU:
- Sabe que quero muito bem a vossuncê veio.
PAI VELHO:
- E num seio? Vossuncê é o único que se
alembra desse traste veio.
ZULU:
- Que traste que nada! Num fale assim, pai
veio. Vossuncê é livre.
PAI VELHO:
- Livre! Pra que? Que adianta essa mardita
liberdade?
ZULU:
- Pai veio foi beneficiado pela lei.
PAI VELHO:
- Porqueira de lei.
ZULU:
- Mai graça a essa lei pai veio e outros
negros escravos tão livre.
PAI VELHO:
- Que liberdade é essa meu fio? Essa lei do
sexagenário é só ilusão.
ZULU:
- Por que pai veio diz isso?
PAI VELHO:
- Ouça aqui fio... Um homi preto, castigado
por essa vida de escavidão, veio e doente serve pra que?
ZULU:
- Ao meno pai veio pode descansá...
PAI VELHO:
- Descansá... Um nego veio, inválido... Só
discansa dispois de morto.
ZULU:
- Credo! Num diga um disconjuro desse... Pai
veio num vai morrer tão cedo. Pai veio há de viver por muito tempo ainda.
PAI VELHO:
- Morrer pra eu seria a mió coisa que Deus
poderia me dá nessa vida. Tudo que eu tinha me foi tirado...
ZULU:
- Ouvi falá que pai veio era rei na sua
terra...
PAI VELHO:
- Foi trazido pra cá, que nem animá, dentro
daquele navio negreiro. Ah, meu fio... Vi muita gente minha morrer a mingua...
Quando num era da peste, morria de fome.
ZULU:
- Mas pai sobreviveu. E tá aqui.
PAI VELHO:
- Antes tivesse morrido. Aqui fui separado do
meu grande amô.
ZULU:
- Nunca mai soube dela?
PAI VELHO:
- Tá mai perto que imagina. E minha fia tamém.
ZULU:
- Deve ser difici, né pai?
PAI VELHO:
- Minha fia é a criatura mai angelical que
existe.
ZULU:
- É pai. Tem um coração de ouro.
PAI VELHO:
- A única coisa que me consola. É sabê que
minha fia num teve o mermo distino deu e de sua mãe. Num veve escrava.
ZULU:
- A escravidão tá próximo do fim. Já vi falano
muita coisa lá na fazenda. Há um grupo de homis que lutam pela o fim da
escravidão e em favô da abolição.
PAI VELHO:
- Só espero num morrê antes... Sabe Zulu.
Quero vê vossuncê livre.
ZULU:
- Mas enquanto isso preciso vortá pra fazenda
antes que dê por minha farta.
PAI VELHO:
- Vá sim fio. Num quero que tenha probrema
mode eu.
ZULU:
- Sua bença pai.
PAI VELHO:
- Que Deus o abençoe fio. (Saem)
SEVERINA:
- Então é isso?! O preto veio tá vivo. Vivinho
da silva! Se o nego veio tá vivo, por que é que veia Biná diz que ta morto? He,
he, he... Aí tem coisa! Nesse angu tem caroço... E eu vou descobrir! É claro.
Sinhaninha é fia desse veio. Agora sim. Tô entendendo tudo. (Sai)
CENA VIII
ALBERTINA:
- Sinhaninha?
ANINHA:
- Boas noites!
ALBERTINA:
- Boas...
CLOVIS:
- Sinhaninha?! Que faz aqui? Estás sozinha?
ALBERTINA:
- Vossa mãe sabe que estás aqui?
ANINHA:
- Falar com Ramos.
CLOVIS:
- Falar com Ramos?
ANINHA:
- Sim senhor. Por favor...
CLOVIS:
- Estás nervosa.
ALBERTINA:
- Sente-se. Aceita uma água.
ANINHA:
- Apenas desejo falar com Ramos.
CLOVIS:
- Albertina faça companhia a senhorita Aninha.
Vou chamar Ramos...
ALBERTINA:
- Claro.
ANINHA:
- Obrigada.
ALBERTINA:
- O que há minha filha? Que está acontecendo?
ANINHA:
- Nada senhora.
ALBERTINA:
- Como nada! Vosmicê aparece assim, de
repente...
ANINHA:
- Preciso falar com Ramos.
ALBERTINA:
- Vou mandar avisar a seus pais que estás
aqui.
ANINHA:
- Não. Por favor... Eles não podem saber que
estou aqui.
ALBERTINA:
- Mais por que?
ANINHA:
- A vida de um homem está em jogo.
RAMOS:
- Aninha?
ALBERTINA:
- Vou deixá-los a sós. (Sai)
ANINHA:
- Ramos... Preciso de sua ajuda.
RAMOS:
- E em que posso ajudá-la.
ANINHA:
- Sei que és abolicionista.
RAMOS:
- Quem lhe disse isso?
ANINHA:
- Também sou simpatizante do movimento.
RAMOS:
- Como posso ajudá-la?
ANINHA:
- Tenho um amigo, um escravo. Precisa de fuga.
RAMOS:
- O que lhe faz pensar que posso ajudá-lo?
ANINHA:
- Sei que tens um bom coração. Quilê corre
risco de morte.
RAMOS:
- Quilê. (Breve silêncio) Acha
mesmo que ajudaria a um homem que tem sido o motivo da minha desonra?
ANINHA:
- Nunca fiz nenhum acordo com o senhor. Por
tanto nunca o desonrei.
RAMOS:
- Seria capaz de qual quer coisa para salvar a
vida desse desgraçado?
ANINHA:
- Qual quer coisa!
RAMOS:
- Qual quer coisa?
ANINHA:
- Sim.
RAMOS:
- Até se casar comigo para salvar a vida dele?
ANINHA:
- Sim.
RAMOS:
- Se sacrificaria a tanto?
ANINHA:
- Não seria nenhum sacrifício. Quem ama é
capaz de libertar. Agora caí em sã consciência. Nossa sociedade jamais aceitará
que uma moça branca se case com um homem negro, escravo.
RAMOS:
- Admiro sua coragem. Sua sinceridade me
comove.
ANINHA:
- Sei que és um bom homem. E que assim como
eu, não se sente confortável ao vê o sofrimento destes pobres infelizes.
RAMOS:
- Eu o ajudarei.
ANINHA:
- Meu Deus! Nem sei como agradecê-lo.
RAMOS:
- Se um dia poder me amar com tanta
lealdade...
ANINHA:
- Temos que ir. Não temos muito tempo.
RAMOS:
- Vamos...
CLÓVIS:
- Onde vão?
ALBERTINA:
- Não podem sair assim...
RAMOS:
- Não há com que se preocupar. Logo estaremos
de volta. (Saem)
CLÓVIS:
- Que loucura é essa?
ALBERTINA:
- Não faço ideia. Mas boa coisa não é.
CLÓVIS:
- Meu chapéu?
ALBERTINA:
- Onde vais?
CLÓVIS:
- Saber o que está acontecendo. (Sai)
CENA IX
SALES:
- Coisa Ruim...
ALVA:
- Que queres com o capitão do mato?
SALES:
- Não te metas...
COISA RUIM:
- Sim senhô?
SALES:
- Aninha?
COISA RUIM:
- Nem siná da moça.
SALES:
- Vamos vê se não aparece...
ALVA:
- Que vais fazer?
SALES:
- Coisa Ruim... Pegue Bernadete e a velha
Biná...
ALVA:
- Não Sales...
SALES:
- Leve-as para o tronco.
COISA RUIM:
- Sim sinhô. (Sai)
SALES:
- Cansei de ser benevolente. Vamos vê se agora
não falam o que sabem.
ALVA:
- Isso é loucura homem.
SALES:
- Loucura é ter deixado sua filha chegar ao
ponto no qual chegou.
ALVA:
- Preferia morrer ao presenciar tudo isso.
SALES:
- Nunca devíamos ter pego aquela menina pra
criar. Corre em suas veias sangue ruim, sangue de negro.
ALVA:
- Não castigue a negra Biná... Tem piedade
Sales... Já tem idade avançada. Não irá suportar o castigo.
SALES:
- Se isso for verdade... Então dirá logo onde
está Aninha.
COISA RUIM:
- Sinhô... Já estão no tronco.
SALES: - Vamos ver se não falam. (Sai)
CENA X
SOARES:
- Já vai... Jesus, Maria, José... Não precisa
derrubar a porta!
SEVERINA:
- Padre.
SOARES:
- Você...
SEVERINA:
- É. Sou uma escrava da fazenda do Coroné
Sales.
SOARES:
- Que faz aqui?
SEVERINA:
- Como o vossuncê num soubesse.
SOARES:
- Que estás dizendo sua negrinha atrevida?
SEVERINA:
- Sei que Sinhaninha tá aqui.
SOARES:
- Tá variando?
SEVERINA:
- Tem um recado importante pra ela.
SOARES:
- Perdeu a viagem.
SEVERINA:
- É uma pena. (Fala alto) Poi ela
gostaria de sabê que a velha Biná tá no tronco junco com a sonsa da Bernadete.
E num vai aguentá muito tempo.
ANINHA:
- Que estás dizendo?
SEVERINA:
- Isso mermo que vossuncê ouviu. Se a veia
Biná e a outra acovetera tua num dissé onde vossuncê tá, vão apanhá inté morrê.
E sabe que eu to inté com peninha delas.
ANINHA:
- Nega atrevida! (Bofetada)
SEVERINA:
- Essa é a última vez que vossuncê me toca.
Mode que vossuncê num é mio que eu.
SOARES:
- Veja com fala com sua senhora.
SEVERINA:
- Fala sério! Ela é tão escrava quanto eu.
ANINHA:
- Que loucura é essa?
SOARES:
- Cala-te!
ANINHA:
- Padre? O senhor... Sabe de alguma coisa?
SOARES:
- Não dê ouvido a essa negra atrevida!
SEVERINA:
- Vossuncê num é fia do coroné com Sinhá Alva.
Sua mãe é a nega Biná.
ANINHA:
- Não pode ser...
SOARES:
- Saia daqui sua nega.
SEVERINA:
- E teu pai tá vivo. É um veio nego
alforriado.
ANINHA:
- Padre... Isso é verdade?
SOARES:
- Não dê ouvidos a está negra...
SEVERINA:
- Vai deixá tua mãe morrer no tronco?
ANINHA:
- Biná! Minha mãe.
SEVERINA:
- Se demorá muito... Sei não. A veia num vai
aguentar.
ANINHA:
- Padre... Tenho sangre negro?
SOARES:
- Filha...
ANINHA:
- Não minta pra mim!
SOARES:
- Vá salvar tua mãe. (Aninha sai
correndo)
SEVERINA:
- Pela primeira vez padre, o senhor fez algo
de bom. Que adianta essa batina, essa cruz pendurada no seu pescoço, se a vida
inteira o sinhô e sua igreja sempre virou as costas para os negros. E ainda tem
a coragem de dizê que diante dos oios de Deus todo mundo é iguá. E o nego, num
é gente? É mermo uma coisa? Num tem sangue, num é feito de carne e osso assim
como o branco? Deus...? Que Deus é esse que o sinhô acredita? (Sai)
CENA X
SALES:
- Prepare o chicote...
COISA RUIM:
- Tá pronto!
SALES:
- Pode deixar. Eu quero ter o prazer de tirar
a verdade dessas negras. Você vai atrás daquele negro safado e só retorne a
esta fazenda trazendo-o, vivo ou morto.
COISA RUIM:
- Sim sinhô.
SALES:
- Agora somos nós...
ALVA:
- Não Sales. Piedade!
SALES:
- É melhor entrar.
ALVA:
- Não faz isso. Pelo amor de Deus!
SALES:
- Cala-te. (Pega Bernadete pelos
cabelos) Por que começo?
BERNADETE:
- Juro que num seio de nada não...
SALES:
- Mas nem ainda perguntei. Já sentiu o corte e
a dor causada por este chicote? Só que estou em dúvida... Se começo por ti ou
pela velha escrava Biná. Que acha Bernadete? Será que a velha negra vai
suportar muito tempo? Pois vou chicoteá-la até que você me diga onde está
Aninha.
BERNADETE:
- Num seio sinhô. Juro que num seio. (Chicoteia
Biná)
SALES:
- Não? Onde está? (Chicoteia Biná)
BERNADETE: - Pare com isso... Juro que
não seio.
SALES:
- Vais lembrar antes que ela morra de tanto
apanhar.
ALVA:
- Chega! (Entra na frente)
SALES:
- Saia! (A empurra. Ela cai) Não
se atreva.
ALVA:
- Estás louco. (Ele a esbofeteia)
SALES:
- Só saio daqui quando me disser onde se
encontra Aninha.
BERNADETE:
- Já disse que não seio. Eu juro sinhô. Deixe
ela. Bata neu.
ANINHA:
- Solte-a. Es-me aqui. Sou eu que mereço está
aí. Fui eu que causei toda essa confusão.
ALVA:
- Filha...
ANINHA:
- Por que esconderam de mim? Por que nunca me
disseram que não sou vossa filha?
ALVA:
- Que dizes filha?
ANINHA:
- Chega de tantas mentiras. Já sei de toda
verdade. Tenho sangue negro. Mãe Biná é minha verdadeira mãe. Por que nunca me
disse?
BINÁ:
- Fiá... Num sô tua mãe. Sinhá Alva é tua mãe.
ANINHA:
- Sei que queres me proteger. Mais não precisa
mais. Já conheço a verdade.
ALVA:
- Eu e Biná parimos no mesmo dia. Só que minha
filha nasceu morta. E como você era clarinha pedi a Biná para criar você no
lugar da minha filha.
ANINHA:
- E meu pai?
ALVA:
- Teu pai foi um capitão que trabalhava aqui
na fazenda. Quando Sales soube do que aconteceu, mandou matar...
ANINHA:
- Assassino!... Solte-a. Me coloque no lugar
dela.
ALVA:
- Não.
ANINHA:
- Seja digno.
SALES:
- Terás o que merece. (Ele solta Biná
e amarra Aninha. Chicoteia).
RAMOS:
- Solte-a.
SALES:
- É minha propriedade, assim como qual quer
escravo desta fazenda.
RAMOS:
- Não mais. A princesa Isabel acaba de assinar
a Lai Áurea. Agora definitivamente a partir de hoje dia 13 de maio de 1888,
todos os escravos sem exceção estão livres.
SALES:
- Não pode ser...
RAMOS:
- Acabou. (Grita) Todos os
escravos estão livres. Livres! (Sales pega uma arma e sai)
ALVA:
- Oh, meu Deus! Sales... (Sai)
RAMOS:
- Aninha...
BINÁ:
- Fiá.
ANINHA:
- Tudo vai ficar bem. (Abraça
Bernadete) Obrigado minha amiga.
BERNADETE: - Tive tanto medo.
ANINHA:
- Sei que sim. Leve mãe Biná... Cuide dessa
ferida. (Sai Bernadete abraçada com Biná) Obrigada.
RAMOS:
- Fico feliz em ajudá-la.
ANINHA:
- Honrarei minha palavra.
RAMOS:
- Palavras são menos valiosas que o desejo do
coração. A liberto da promessa!
ANINHA:
- És muito generoso.
RAMOS:
- Busco ser justo. (Ouvem um tiro.
Choro de Alva)
ALVA:
- Está morto! Sales... Se matou.
ANINHA:
- Mãe...
ALVA:
- Fique longe de mim... fique longe de
mim! (Estérica. Sai)
QUILÊ:
- Aninha...
ANINHA:
- Quilê? Que faz aqui?
QUILÊ:
- Sou livre! Livre.
ANINHA:
- Pensei que estivesse no quilombal...
QUILÊ:
- Não suportaria ficar longe de você.
ANINHA:
- E o capitão do mato?
QUILÊ:
- Não precisamos mais se precupá com ele. O
Coisa Ruim tá onde merece. Do lado do outro coisa ruim.
ANINHA:
- Nem acredito!
QUILÊ:
- Vida nova Aninha...
ANINHA:
- É, vida nova! (Saem)
F
I M
Peça protegida por Direitos Autorais
Peça protegida por Direitos Autorais
Nenhum comentário:
Postar um comentário